Seja nas mãos, no bolso ou na carteira, é quase impossível encontrar no Rio de Janeiro alguém com dinheiro sem presença de cocaína. Uma pesquisa da Universidade Federal Fluminense (UFF) revelou que cerca de 90% das notas de real em circulação apresentam traços da droga. São pequenas quantidades, mas em frequência tão ampla que evidencia a disseminação da cocaína no Rio e em outros dez municípios.
O estudo, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), chega num momento em que se discute a legalização das drogas no país.
“É virtualmente impossível não pegar notas com a droga. Elas estão distribuídas por toda a parte”, explica o pesquisador Wagner Pacheco, do Departamento de Química Analítica da UFF.
Em parceria com o químico Ricardo Cassella, Pacheco orientou uma tese de doutorado sobre o assunto elaborada pela pesquisadora Vanessa Gomes Kelly Almeida. A ideia era fazer no Brasil um tipo de estudo já realizado na Europa e nos Estados Unidos. Para isso, foi composto, por meio da análise da frequência da cocaína nas cédulas, um painel de sua disseminação. A pesquisa revelou que a contaminação das notas de real segue o mesmo padrão de distribuição observado em euros e dólares. “Esse é o cenário atual dos grandes centros do mundo”, afirma Cassella.
Explicação: uso como canudo
Para os químicos, o fato de traços de cocaína serem tão comuns tem três motivos. O primeiro é o número considerável de usuários e traficantes que enrolam as notas para usá-las como canudos na hora de aspirar a droga.
Em segundo lugar, o papel-moeda apresenta porosidade e se mantém úmido, o que facilita sua impregnação pela cocaína, que é um pó finíssimo. O terceiro motivo é a intensa circulação do dinheiro e a mistura de notas nas máquinas de saque e nos bancos. Uma única cédula pode contaminar muitas outras, explica Pacheco. Os cientistas investigaram também se havia variação geográfica. Queriam saber se áreas onde há mais tráfico ou consumo teriam concentração maiores.
“As notas são tão misturadas que essa variação não existe. É a mesma coisa em toda parte”, salienta Cassella.
Vanessa observa que a cocaína aparece em quantidades ínfimas, só detectáveis em análises muito específicas. A concentração média por nota é de 50 a 300 microgramas. A nota com maior concentração, oriunda da Vila Mimosa, tinha 885 microgramas. “Porém, a distribuição é tão ampla que uma nota de Paraty tinha 774 microgramas”, diz a pesquisadora.
Em uma parte do estudo, foram medidas três amostras cedidas pela polícia de notas encontradas em sacos com drogas. Essas tinham concentração 30 vezes maior. E, de acordo com Vanessa, as cédulas de valor mais baixo contêm mais cocaína — isso acontece porque circulam mais.
“Analisamos 138 notas de lugares aleatórios, o que torna a amostragem bem representativa do estado. Trabalhamos com lugares como Aeroporto Internacional Galeão-Tom Jobim, o Morro da Mangueira, Petrópolis e Maricá”, informa Vanessa.
Cassella destaca que os traços de cocaína são um forte indicador da disseminação da droga, mas não representam qualquer risco à saúde. “São traços insignificantes para fazer qualquer diferença a uma pessoa. Para se ter ideia, um micrograma é um milhão de vezes menor que um grama”.
O próximo passo da equipe da UFF é construir uma espécie de assinatura química da droga no Rio de Janeiro. Estudos de outros grupos já indicaram que a composição muda de um estado para outro em função das substâncias misturadas à cocaína pura, como o paracetamol e a lidocaína.
O teste
Para extrair a cocaína das notas de real é preciso lavar dinheiro — no sentido literal. O primeiro passo é limpar bem a cédula e tirar todas as substâncias visíveis impregnadas nela. Em seguida, a nota é colocada num tubo de vidro com um líquido e fica uma noite ‘‘lavando’’. Depois, é colocada para secar e aproveitada normalmente. “As notas ficam limpíssimas”, brinca a pesquisadora Vanessa Gomes Kelly Almeida.
Já o líquido absorve todas as substâncias que ainda estavam presas à cédula. Em linhas gerais, o passo seguinte consiste na identificação das matérias presentes. Isso é feito com um equipamento chamado cromatógrafo.
O equipamento consegue separar todas as substâncias e estipular a concentração de cada uma delas. Assim, identifica e mede a quantidade de cocaína.
Fonte: O Globo