Dona Maria Ildete Santana Oliveira vem acompanhando a construção do banco Sementes da União, na comunidade de Poço Cumprido, no município baiano de Vitória da Conquista. Enquanto o banco não se constitui, as sementes passaram de estocadas em casa para guardadas na sede da associação. Dona Maria e Manoel, seu esposo, aprenderam com os pais a tradição de estocar sementes a mais de 30 anos. A armazenagem era feita em tambores de zinco, mas a família aprendeu com o tempo e com a participação em processos de formação a estocar em garrafas pets as sementes de milho, feijão de corda, feijão guandu, abóbora e melancia. Enquanto o trabalho continua, o banco está sendo construído coletivamente por mais de dez famílias de Poço Cumprido. “O banco vai melhorar a nossa vida por que não vamos ter que comprar sementes. Vai ser bom pra gente comer, pra poder ajudar a quem precisa. Tem ano que dá mais e a gente pode ajudar”, conta. (http://www.asabrasil.org.br/Arquivos/candeeiro_ba_2041.zip)
Dona Maria e Seu Manoel estocam sementes há 30 anos. | Foto: Arquivo Cedasb |
Assim como conta Dona Ildete, as sementes são parte da história de milhares de famílias no Semiárido brasileiro. A mulher e o homem do campo vêm contribuindo com a resistência das espécies crioulas e com a preservação de um patrimônio genético guardado em um Semiárido rico, ao cultivá-las livres de agrotóxicos. O plantio respeita o solo e cuida da saúde de quem planta e se alimenta. Cada região cuida de uma forma desse patrimônio, dá nomes, sabe o tempo de colher e de plantá-la. Faz uso da semente para se alimentar e para narrar a sua história passada de avós para pais, para filhos e filhas sertanejos/as. Esse conhecimento das famílias agricultoras é uma prática que a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) valoriza e reconhece como um valor inestimável e insubstituível para a construção da convivência com o Semiárido. Por isso, a rede acaba de lançar o Programa Sementes do Semiárido apoiado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES).
Segundo o coordenador do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da ASA, Antônio Barbosa, a Articulação vem ao longo dos seus 15 anos de história sistematizando a prática de experiências dos agricultores – entre elas a relação com as sementes. As sementes ganharam nomes característicos nos estados, como: Sementes da Vida (Ceará), Sementes da Fartura (Piauí), Sementes da Liberdade (Sergipe), Sementes do Meu Avô (Bahia), Sementes da Paixão (Paraíba), Sementes da Gente (Minas Gerais) e Sementes Crioulas (Pernambuco e Rio Grande do Norte). Identificar, resgatar, estocar e multiplicar para reconstituir o patrimônio genético das famílias e fortalecer sua autonomia estão entre os objetivos do Programa.
“O Programa Sementes do Semiárido é a continuidade da ação da ASA, que conseguiu consolidar uma proposta no campo da água de beber, já se fala em quase um milhão de cisternas; conseguiu avançar na perspectiva de água para produção, já são em torno de 120 mil famílias com água pra produção. Desse número só a ASA foi responsável por mais de 85 mil. A ASA assumiu para si um compromisso de construir um programa de sementes no seu último EnconASA [Encontro Nacional da ASA], e vem discutindo com um conjunto de parceiros como MDS, MDA, BNDES, e com a própria Embrapa”, avalia Barbosa.
O Sementes do Semiárido dará mais um passo importante na perspectiva da convivência com a região, fortalecendo a caminhada da ASA na garantia da segurança e soberania alimentar das famílias. É um programa inovador no País e que nasce da prática das comunidades, assim como os outros programas da ASA, numa lógica inversa à construção dos projetos que nascem de cima para baixo. É uma ação que também está inserida na Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) instituída recentemente e que é resultado de uma luta da sociedade civil.
Sementes da União – É no espaço do quintal e do roçado que a vida segue e pulsa no Semiárido. A agricultora Elizângela Ribeiro de Aquino, 43 anos, acredita que a autonomia do agricultor e da agricultora está na semente. Para ela, perdê-las é ficar refém do comércio e não encontrar sementes de qualidade. Desde que nasceu a agricultora recorda a família trabalhando com a proteção das crioulas, conservadas na palha. No ano de 1998, Elizângela foi morar no assentamento Tapera, no município Riacho dos Machados, ao norte do estado de Minas Gerais. A partir de então, ela diz ter nascido um novo espírito, de contribuir com o dia a dia das outras 42 famílias do lugar, com o surgimento do assentamento fundado na proposta agroecológica.
Agricultora do norte de Minas, Elizângela Aquino, acredita que autonomia das famílias está na semente. | Foto: Arquivo CAA-NM |
A agricultora planta a semente do milho coruja e catete, do maxixe, abóbora e arroz. Parte do que produz é comercializado pelas famílias na cooperativa. Há 8 anos a comunidade está empenhada em construir a Casa Comunitária Sementes da Geração. “Estamos ampliando a casa com projeto de Fundo Solidário. A gente faz um trabalho de conscientização para tentar atingir 100% das famílias sobre a importância da preservação do cerrado para a continuidade da água”, conta. Enquanto a casa não é construída, Elisângela e as famílias se reúnem na Associação Nossa Senhora das Oliveiras para debater sobre causas importantes como a ameaça apresentada pelos transgênicos e o quanto as mudanças climáticas interferem na preservação das sementes crioulas.
As famílias moram numa área de 3 mil hectares de uma fazenda com 24 mil hectares. No passado, o fazendeiro da região criava gado. Hoje há uma floresta de eucalipto para sustentar a demanda de uma empresa instalada na área. ‘Remando contra a maré’, a associação faz um trabalho de preservação das nascentes dos rios para que permaneçam vivas.
“Temos uma diversidade muito grande de sementes. E as pessoas tem uma relação afetiva com as sementes. A semente está associada à identidade, à comida, mexe em muita coisa e envolve pessoas. As sementes já são estocadas pelas famílias, e estamos ampliando a ideia de estoque comunitário e de como a semente pode servir ao seu entorno”, avalia Antonio Barbosa. O programa da ASA apoiará 640 casas de sementes no Semiárido brasileiro, envolvendo 12.800 famílias agricultoras no fortalecimento da sua identidade e autonomia, a partir da identificação e resgate de sementes crioulas dos territórios, promovendo o estoque e a multiplicação para reestabelecer a base genética.
Desafios – As ameaças vivenciadas pelas famílias do assentamento Tapera são semelhantes às de outras comunidades do Semiárido. É nesse contexto de disputa de projeto e de interesses bastante opostos que o programa de sementes será desenvolvido. “A semente está no centro do projeto hegemonizado pelas grandes empresas ligadas ao agronegócio”, destaca Luciano Silveira, da AS-PTA.
De acordo com Luciano um dos pontos chaves do programa é o fortalecimento das redes territoriais de conservação das sementes que possam trabalhar a dimensão da gestão coletiva de maneira mais ampla. Além disso, outra proposta do programa é que os agricultores possam comercializar sementes crioulas pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), estas sementes serão distribuídas no território abastecendo outros bancos de sementes e agricultores, que terão acesso a sementes adaptadas ao Semiárido e sobre as quais eles construíram e acumularam conhecimentos. Nessa perspectiva é um exemplo de política pública que reconhece e valoriza as comunidades tradicionais e seus saberes.
Ele também apontou outros desafios relacionados a execução do programa como a relação com o ciclo das chuvas e a necessidade de construir resultados comunitários. “Essa ação tem características próprias em relação aos outros programas da ASA. O principal resultado não é a estrutura que ela deixa. No P1MC e no P1+2 temos uma estrutura hídrica. O foco é na família. No programa de sementes é um resultado de processo”, aponta Silveira.
Teste de transgenia – No Semiárido existem áreas de contaminação com a presença de sementes transgênicas ou melhoradas geneticamente, que sofrem mutações em laboratórios. A ideia do Programa é também poder identificar essas contaminações a partir de testes de transgenia em casas de sementes e estimular o debate junto às famílias agricultoras. O teste será usado em 24 territórios do Semiárido, avaliando uma média de 10 municípios por cada território. O alcance será de quase um quarto dos municípios da região semiárida. Com o resultado será possível mapear os casos de contaminação e de áreas livres de transgênicos.
Com informações Ylka Oliveira – Asacom