A Dança da Lezeira do Sertão do Piauí está sendo cotada para se tornar patrimônio cultural do Brasil junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O pedido de registro foi realizado pela Secretaria de Educação do município de Floresta do Piauí em dezembro de 2021. O processo começou a andar e uma equipe de estudiosos está percorrendo o circuito da Lezeira no Centro-Sul do estado para iniciar um diálogo com os detentores desse bem cultural. A equipe é composta pelo historiador do Iphan Ricardo Augusto Pereira e pelo filósofo Eduardo Pontin. A Lezeira é uma dança de roda de adultos praticada ao menos desde o século XIX por lavradores e lavradoras do sertão do Piauí.
O pedido de registro da Lezeira como Patrimônio Cultural Brasileiro foi feito após intensa pesquisa de campo de Eduardo Pontin e da jornalista Francisca Sousa, entre 2020-21. Ricardo Augusto, ao tomar conhecimento da pesquisa, sugeriu que o pedido de registro da Lezeira fosse formalizado, o que só poderia acontecer, entre outras alternativas, por meio de uma Secretaria Municipal.
Eduardo e Francisca então conversaram com o Prefeito de Floresta do Piauí, Milton Rodrigues, que concordou imediatamente com a pauta e solicitou a Juninha (Albertina Araújo Santana), Secretária de Educação, que elaborasse o pedido. Antes, porém, foi necessário colher assinaturas das pessoas que compõem a comunidade da Lezeira concordando com o pedido. Eduardo e Francisca então percorreram 8 municípios, 15 povoados rurais e 3 comunidades quilombolas, obtendo expressivas 500 assinaturas.
Em seguida, os pesquisadores levantaram a bibliografia disponível a respeito da Lezeira e anexaram ao processo, em material que inclui fragmentos de livros, trabalhos acadêmicos, notícias de internet, fotos e vídeos. Por fim, Pontin elaborou o estudo que subsidiou o pedido de registro: “Lezeira: música e dança mais característica do Piauí”. Assim, em dezembro de 2021, o pedido para que a Lezeira seja reconhecida Patrimônio Cultural do Brasil foi protocolado junto ao Iphan. No estudo inicial anexado ao processo, Eduardo e Francisca mapearam ao menos 60 localidades na região Centro-sul do Piauí onde a Lezeira é ou já foi praticada. Os pesquisadores colheram informações orais com cerca de 70 pessoas que brincam a Lezeira, entre cantadores (eiras) e respondedores (eiras).
Nessa etapa inicial do processo, Ricardo Augusto e Eduardo Pontin estão apresentando aos detentores dessa expressão informações sobre como funciona o processo de Registro da Lezeira como Patrimônio Cultural Brasileiro.
Ricardo Augusto Pereira possui vasta contribuição à salvaguarda de patrimônios materiais e imateriais do Piauí. Foi responsável pela pesquisa histórica do estudo da Fábrica de Manteiga e Queijo das Fazendas Nacionais, edificação localizada em Campinas do Piauí, tombada pelo Iphan em 2014. Atuou na Coordenação Técnica do Processo de Registro do Modo Tradicional e Práticas Socioculturais associadas à Cajuína do Piauí, único bem imaterial específico deste estado registrado pelo Iphan, também em 2014. Há pouco mais de 15 anos vem realizando intenso trabalho junto aos bens culturais de Comunidades Quilombolas do Piauí. Dirigiu e roteirizou diversos documentários, a exemplo da obra-prima “Lá vem a barra do dia” (2008), sobre o Samba de Cumbuca da Volta do Campo Grande (Campinas do Piauí), com codireção de Roberto Sabóia; e “Lezeira” de Custaneira (2008) Paquetá – PI, em codireção com César Crispim. É organizador do livro “Bens Negros. Referências Culturais em Comunidades Quilombolas do Piauí” (2012) e da plaquete “Povos Quilombolas do Piauí – memórias, práticas e modos de vida” (2013). Autor do livro “Poetas do Tambor” (2021), que retrata de forma pioneira e dignificante a expressiva presença do Tambor de Crioula na região dos Cocais do Piauí, esclarecendo que esta expressão cultural não é exclusivamente maranhense, como se supunha.
Eduardo Pontin há pouco mais de 10 anos desenvolve estudos e pesquisas de campo no universo do samba e da cultura popular brasileira. É membro fundador do Instituto Glória ao Samba (IGS). Organizador do livro “Primeiras Lições de Samba” (2018), do historiador de nossa música popular José Ramos Tinhorão (1928-2021), lançado pelo IGS. Realizou em parceria com o IGS o projeto “50 Livros Essenciais da Literatura do Samba” (2019). Roteirizou o documentário “Dona Leda – Glória ao Samba” (2020), sobre a sambista da Escola Império Serrano, com direção de Thiago Busse e produção do IGS. Idealizador e fundador da Academia Florestense de Cultura Popular, no município de Floresta do Piauí, juntamente com Francisca Sousa. Recebeu 1ª Menção Honrosa no Prêmio Nacional Sílvio Romero de Monografias sobre Folclore e Cultura Popular 2022, com trabalho “LEZÔ, LEZÁ, VAMÔ VADIÁ, NESTA LEZEIRA! Ancestralidade e simbolismo na dança da Lezeira do sertão do Piauí”.
O período da Semana Santa foi cuidadosamente escolhido para esse contato inicial da equipe do Iphan junto aos detentores da Lezeira. Isso porque essa é a época historicamente preferida para a prática da Lezeira. Ricardo e Eduardo estão estabelecendo diálogo com brincantes dos municípios de Floresta do Piauí, Santo Inácio do Piauí e Wall Ferraz, bem como das Comunidades Quilombolas Mutamba, Custaneira (Paquetá -PI) e Atrás da Serra (Santa Cruz do Piauí), além dos povoados rurais Tombador (Itainópolis) e Boa Vista dos Borges (Picos).
A Lezeira é tão marcante como manifestação cultural nesta região que 7 cantadores foram certificados como Patrimônio Vivo do Piauí entre 2021 e 2022: Raimundão da Mutamba; Pai Pedim de Atrás da Serra; Dona Rita de Custaneira; Dona Chica Tomé do Sobrado Grande; Dona Iraci do Tombador; Seu Chiquim Ferreira e Gabiru de Floresta.
Ao contrário de manifestações culturais nordestinas recentemente registradas como Patrimônio Cultural Brasileiro, tal qual a Ciranda, a Cantoria (Repente) e o Forró, a Lezeira ainda não se profissionalizou. Os grupos de Lezeira são formados espontaneamente em suas regiões e prevalece seu aspecto informal, democrático e inclusivo. Esses grupos raramente se apresentam em festivais ou apresentações profissionais. Tudo ainda é feito organicamente, no terreiro, ao ar livre, em meio ao clarão da lua e da luz de um facho de fogo, sem microfone, com todos cantando no gogó, de pés no chão. Com isso, a Lezeira não se apresenta para um público distante da sua realidade, mas para a sua própria comunidade, promovendo espaços de sociabilidade onde é executada.
Ou seja, a Lezeira não apenas vem sobrevivendo como também existindo dinamicamente nas comunidades rurais onde é cultivada sem qualquer tipo de pretensão financeira. Seus praticantes brincam porque gostam, porque se sentem pertencendo ainda mais à sua comunidade, desfrutando de momentos de alegria e prazer quando fazem a grande roda de Lezeira girar. Pessoas de cidades diferentes que nunca se viram cantam as mesmas cantigas e realizam os mesmos passos de dança.
Como explicar isso senão por meio de uma complexa rede sociocultural que demonstra a solidez de um legítimo patrimônio? Com essas atividades iniciais da equipe do Iphan para que a Lezeira se torne Patrimônio Cultural do Brasil, os ancestrais desta manifestação que já se foram devem estar vibrando, pois finalmente estão sendo reconhecidos. Não só isso, com a renovação da Lezeira promovida pelas ações do Iphan, esta dança tem tudo para ser salvaguardada e prosseguir sendo transmitida para as novas gerações, como há mais de um século vem acontecendo no sertão piauiense.