A trajetória de Marrian Rodrigues, de aprendiz, doutora em arqueologia a chefe do Parque Nacional Serra da Capivara, é um testemunho vivo do legado educacional da arqueóloga Niéde Guidon, que morreu na última quarta-feira (4) em sua residência no município de São Raimundo Nonato.
A arqueóloga, que revolucionou os estudos da ocupação humana na América, se empenhou, arduamente, não só para preservar as inscrições rupestres, a natureza, a história da humanidade, mas também com a educação dos meninos e meninas da região.
Foto arquivo pessoal
Na década de 90, com ajuda de organizações da França criou uma escola por tempo integral para alfabetizar filhos e filhas dos moradores do entorno do parque. Niède realizou várias ações sociais com crianças. Chegava, ela mesma, a fazer tortas no domingo para distribuir para as crianças do projeto social.
Marrian conviveu com Niède desde pequena. Aos 7 anos, ela lembra que certa vez, vários meninos e meninas tinham curiosidade para saber o que ela guardava tanto no quarto da hospedaria da dona Delfina, onde ficava. Uma vez, a arqueóloga os chamou e deixou eles entrarem no quarto. “Fizemos uma fila, um a um entrava no quarto e ela mostrou um esqueleto, todo mundo entrou no quarto achando que ia ver ouro, um tesouro, e era esqueleto. Ela explicava o que era, o que estava fazendo. Desde esse tempo, ela tinha preocupação que a gente entendesse seu trabalho”, disse Marrian emlágrimas.
Incentivada por Niède, Marrian foi assistente de projetos, se dedicou aos estudos, se formou em magistério e fez doutorado em arqueologia.
“Comecei como aluna, aprendiz, assistente, professora, coordenadora e nesse universo ela sempre incentivou a todos a estudar. Ela fazia concurso de leitura, passava os livros, textos e dizia: vai todo mundo ler e fazer uma redação e ela corrigia a redação, mandava para os amigos dela corrigir e se tivesse uma vírgula fora do lugar, já estava reprovado. Todo mundo ficava com muito medo da correção e ela oferecia prêmios como livros, bicicletas. Ela mudou não só a minha vida, mas de muita gente”.
A chefe do Parque conta que quando passou para o mestrado em Portugal foi feliz contar para Niède e ela disse: “Só volte aqui com o doutorado. Eu fiquei muito magoada com ela (disse em meio a risos e lágrimas). Pensei: o que ela quer de mim? o mestrado é algo que nunca imaginei fazer, vou pra fora do Brasil, nunca sair daqui, deixar meu filho e meu marido para fazer o mestrado, que ela tanto me incentivou e ela me diz pra voltar só em sete anos. E eu fui, seguir, mesmo sofrendo, eu seguir, eu queria mostrar para ela que eu era capaz”, disse.
Marrian conta que tudo que publicava durante o doutorado enviava para Niède e mesmo de longe a arqueóloga puxava as orelhas dela. “Às vezes ela me reclamava, me dava uma bronca e hoje eu sei como foi valioso ela ter me empurrado, mesmo eu sem querer ir, e ela dizia: ‘você quer ser professorinha primária para o resto de sua vida’ e eu falei: ‘quero, quero ficar aqui’ eu não quero ir embora’. Eu fui e quando voltei ao Brasil, fui trabalhar em outros lugares e quando o parque passava por dificuldade de gestão eu fui convidada para assumir a chefia do parque, já estava com mestrado, doutorado, já tinha currículo e ela referendou a minha entrada no parque e referendou até o último dia”, disse Marrian que lembrava emocionada.
A história de Marrian Rodrigues, 47 anos, não é apenas sobre ascensão profissional, é sobre a perpetuação de um ideal. Niéde Guidon investiu profundamente na educação e na formação de pessoas da própria comunidade, entendendo que o futuro do parque dependia da capacidade e do engajamento de seus habitantes. Marrian Rodrigues é um dos frutos mais notáveis desse investimento. Sua ascensão demonstra o sucesso de um modelo que integra o desenvolvimento local com a conservação ambiental e cultural.
Foto: Yala Sena
Hoje, no alto escalão do Parque Serra da Capivara, Marrian Rodrigues não é apenas uma gestora. Ela é a materialização da “herança educacional” de Niéde Guidon, um símbolo de como o conhecimento, quando compartilhado e cultivado, pode transformar vidas e comunidades inteiras, assegurando que o patrimônio da Serra da Capivara continue sendo cuidado por aqueles que o consideram seu lar.
“O nosso farol se apagou aqui na Terra, mas continuará a nos guiar de outro plano. O legado da doutora Niede Guidon precisa ser preservado com responsabilidade e respeito à grandiosidade de sua trajetória. Sua coragem e determinação não podem ser esquecidas — ao contrário, devem seguir inspirando novas gerações. O projeto que ela construiu com tanto empenho deve continuar, sem interrupções. No que depender de mim, honrarei cada ensinamento que recebi dela, colocando em prática tudo o que aprendi ao seu lado”, disse Marrian em homenagem em sua página na rede social.
Fonte: CidadeVerde